Direito Penal e Tecnologia: Análise do Uso da Videoconferência em Audiências da Área Penal
14 de setembro de 2020RESUMO: Atualmente, a tecnologia está presente no dia a dia de profissionais de diversas áreas de atuação, chegando ao alcance de todos em todas as esferas da sociedade, e, na área do Direito não é diferente. Podemos verificar que com a modernização do modelo de gerenciamento de processo do Poder Judiciário em todo o país há uma maior celeridade nos processos e, consequentemente, uma melhor resposta aos anseios da sociedade. Portanto, diante das inovações tecnologias que tem invadido os escritórios de advocacia e as portas da Justiça se faz necessário um estudo sobre como se dá a interação entre o Direito Penal e a tecnologia no uso da videoconferência nas audiências, demonstrando seus benefícios, desvantagens, aplicação pratica e a devida efetivação dos direitos de todos.
PALAVRAS-CHAVES: Direito; Tecnologia; Videoconferência; Direito Penal.
ABSTRACT: Currently, technology is present in the day-to-day lives of professionals from various areas of activity, reaching the reach of everyone in all spheres of society, and in the area of law is no different. We can verify that with the modernization of the process management model of the Judiciary throughout the country there is a faster speed in the processes and, consequently, a better response to the longings of society. Therefore, in view of the technological innovations that have invaded law firms and the doors of Justice, it is necessary to study how the interaction between criminal law and technology in the use of videoconferencing in hearings is necessary, demonstrating its benefits, disadvantages, practical application and the proper realization of the rights of all.
KEY-WORDS: Law; Technology; Videoconferencing; Criminal Law.
SUMÁRIO: Introdução. 1. A interação entre o direito e as tecnologias: análise do uso da videoconferência em audiências criminais. 2. O instituto da audiência de custódia como instrumento de aplicação dos direitos humanos e a interpretação do Conselho Nacional de Justiça. 3. Possibilidades do uso da videoconferência no Direito Processual Penal. 4. As contribuições do uso da videoconferência em audiências em tempos de pandemia. Considerações finais. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A sociedade está em um constante processo de evolução. A cada instante surgem novas concepções de ideais, formas de relacionamentos e relações entre povos, de forma que é uma necessidade que o Direito, enquanto ciência jurídica acompanhe esse crescimento. As tecnologias são o resultado dessa evolução, permitindo que haja uma conexão em tempo real entre pessoas em diversos espaços do mundo criando uma interligação, a qual se pode chamar de globalização.
A interação entre o Direito e as tecnologias se faz cada vez mais necessárias na medida em que o direito precisa de novas formas para alcançar os objetivos estipulados em Lei. Não é de hoje que percebemos que cada vez mais a tecnologia tem feito parte do mundo jurídico, estando visíveis na automação do Poder Judiciário através dos sistemas de peticionamento eletrônico que teve como resultado uma aceleração perceptível em processos e maior comunicação entre a Polícia Judiciária e a própria justiça.
Nos escritórios de advocacia, podemos visualizar a interação com as lawtechs ou legaltechs no uso de plataformas de oferecimento de documentos dos clientes e de andamento de processo, também há programas específicos que alertam os advogados sobre as movimentações nos processos como citações ou algum ato expedido pela unidade judiciária em que esteja tramitando essa causa. As novas tecnologias são atores no processo de interação e automação do Direito demonstrando que a sociedade necessita de uma resposta imediata e eficaz nos litígios apresentados.
Portanto, a presente pesquisa tem como objetivo apresentar como é realizada essa interação entre o Direito e as novas tecnologias nos processos da área penal, onde a resposta deve ser a mais célere e eficaz possível haja vista que nesse ramo especifico do Direito são vários os bens jurídicos tutelados e alcançam diversas situações nas mais variadas esferas da sociedade. Para chegar a esse objetivo é necessário explanar sobre a interação entre o direito e as tecnologias de tal modo que se possa analisar o seu uso na aplicação de videoconferências em audiências, suas implicações, as possibilidades na lei processual penal, os benefícios em tempos atuais e as desvantagens, como na audiência de custódia.
Diante das novas possibilidades e do avanço tecnológico que nos cerca a cada dia, é de suma importância compreender como a ciência que estuda as leis pode e deve se encaixar nas novas transformações que se interligam nas esferas da sociedade. É importante entender como a tecnologia pode contribuir para a melhor dinâmica dos operadores do Direito para contribuir no exercício de sua profissão, na missão de realizar o valor de justiça.
1. A INTERAÇÃO ENTRE O DIREITO E AS TECNOLOGIAS: ANÁLISE DO USO DA VIDEOCONFERÊNCIA EM AUDIÊNCIAS CRIMINAIS
Com um mundo tão globalizado, o Direito foi aprimorado com as relações tecnológicas que invadiram as esferas da sociedade. Podemos perceber que em vários ramos do direito as novas tecnologias, como o uso do aparelho celular, ligações, videoconferências, computadores, compras pela internet e comunicação instantânea através das redes sociais envolveram o ser humano de tal modo que as suas formas de interação passaram a ser nesse novo formato. Consequentemente, novos direitos foram surgindo e bens tutelados anteriormente tiveram que ter uma nova concepção para o Direito.
Crimes contra a honra se tornaram mais comuns em redes sociais, ofensas que se iniciam no mundo virtual, mas que geram consequências no mundo físico como lesões corporais e até outros crimes, podem ser exemplos de casos em que as tecnologias estão envolvidas em crimes. Não podemos deixar de citar as fraudes bancárias, apropriação indébita, divulgação de imagem sem autorização, descontos indevidos que os clientes podem verificar em extratos disponíveis em aplicativos de celular, também há as questões de crimes contra o consumidor haja vista a grande expansão do e-commerce e seu grande alcance com a facilitação e comodidade das compras. São muitas as formas em que o mundo digital se tornou alvo de crimes e até contravenções penais.
A tecnologia além de ser usada para o mal, também foi usada para o bem. Em escritórios de advocacia é muito comum o uso de plataformas digitais de organização de documentos, dados de processos e até programas de coordenação de intimações. Cada vez a tecnologia é usada como aliada na eficácia do Direito perante a sociedade, podemos usar como exemplo prático a automação dos processos judiciais e a sistematização do serviço judiciário com filas digitais e o uso de processos eletrônicos.
Com o advento do celular e a possibilidade de fazer vídeos chamadas a qualquer lugar foi possível que as filas de trabalho do Poder Judiciário se tornassem mais céleres mediante o uso dessa tecnologia. As audiências dos Juizados Especiais são gravadas e arroladas nos processos como prova da mesma forma acontece na justiça ordinária de modo que ambas as partes podem acessar. Além disso, muitas vezes vídeos de câmeras de segurança são juntadas aos autos como provas pelas partes em diversos crimes.
Um grande avanço que podemos citar sobre a interação entre o Direito e a Tecnologia é a modernização do sistema judicial através o advento da Lei. 11.419/2006. A referida lei trata do uso de meio eletrônico para a tramitação de processos judiciais de modo que haja uma informatização do processo judicial. Essa informatização engloba o que conhecemos hoje com Portal Eletrônico de citação e intimação das partes, como pessoas jurídicas, órgãos públicos, Ministério Público e Defensoria Pública, ou o Diário Eletrônico de intimação para advogados das partes representadas. Essas são algumas das implementações que modificaram de forma salutar o sistema de trabalho e de desenvolvimento do processo.
Na Constituição Federal de 1988, precisamente em seu artigo 5º, inciso LXXVIII, esta esculpida o princípio da celeridade processual. Esse princípio garante que todos os processos sejam administrativos ou judiciais tenham todos os esforços possíveis empenhados para que haja uma duração razoável na solução do litígio apresentado ao Poder Judiciário, de modo que a celeridade seja levada em consideração em todas as etapas do processo. Na esfera penal, é possível visualizar esse princípio em casos de expedição de mandados de prisão, cumprimento de sentença penal, audiências de custódia entre outros.
Se formos comparar os dados do Poder Judiciário com os atuais poderemos visualizar que com a automação dos processos e com a entrada em vigor da lei do processo judicial eletrônico, supracitada, os números de processos que tramitam nas varas criminais são menores e mais céleres. Conforme dados apresentados no relatório Justiça em Números de 2020 do Conselho Nacional de Justiça, ano base 2019, podemos obter como resultado que o tempo de duração da tramitação processual até a sentença dos processos em Juizados Especiais é de apenas oito meses, fase de conhecimento na justiça ordinária é de dois anos e dez meses.
Esses dados demonstram que com a modernização tão presente no cotidiano do Poder Judiciário houve uma melhora significativa no desenvolvimento de cada etapa do processo. De modo que os princípios resguardados pela Constituição Federal de 1988 são amplamente respeitados, o que não poderia se sustentar caso ainda fosse utilizado às inúmeras pilhas de papéis com provas, petições, despachos e sentenças dos processos físicos.
2. O INSTITUTO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA COMO INSTRUMENTO DE APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E A INTERPRETAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA NO QUESITO DO USO DA TECNOLOGIA
Mas com a modernidade o Direito foi obrigado a evoluir para acompanhar todo o progresso da sociedade, criando novos métodos capazes de satisfazer as pretensões que surgem ao Poder Judiciário bem como utilizar de novos meios para que os princípios norteadores esculpidos nas linhas da Constituição Cidadã sejam devidamente cumpridos juntamente com os Direitos Humanos. Recentemente, em meados de 2019 surgiu com o advento da Lei 13.964/2019, o artigo 310 do Código de Processo Penal foi alterado passou a ter a obrigatoriedade da realização da audiência de custódia nos casos de prisão em flagrante, no prazo máximo de apresentação do preso ao Juiz competente em até 24 horas após a realização da prisão.
Essa nova audiência acrescentada ao rol de audiências constante no Processo Penal não surgiu de uma hora para a outra, é o resultado de um debate sobre preceitos retirados dos Direitos Humanos que influenciaram no ordenamento jurídico penal. Renato Marcão (pág. 708, 2018) nos explica sobre a origem a fundamentação jurídica da audiência de custódia, bem como explica sobre o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
“No dia 15 de dezembro de 2015 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. 213, que entrou em vigor no dia 1º de fevereiro de 2016 e dispõe sobre a apresentação de toda pessoa à autoridade judicial, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. Sobredita Resolução aponta dentre seus diversos fundamentos o disposto no art. 9º, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas; o art. 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica); o art. 96, I, letra a, da Constituição Federal, que “defere aos tribunais a possibilidade de tratarem da competência e do funcionamento dos seus servidores e órgãos jurisdicionais e administrativos”; e também o que fora decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.240, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da disciplina pelos tribunais da apresentação da pessoa presa à autoridade judicial competente, e a determinação imposta por ocasião da apreciação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, na qual a Suprema Corte fixou a obrigatoriedade de apresentação da pessoa presa à autoridade judicial competente.” ( MARCÃO, pág. 708, 2018)
Diante das colocações do autor, podemos compreender que nessa audiência o juiz analisa a situação da prisão sob o aspecto da legalidade, necessidade e a devida adequação da prisão. Em casos em que não se preenche esses requisitos, há a concessão de liberdade, com ou sem imposição de medidas cautelares. Nesta audiência também se é ouvida as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública nos casos em que os presos não possuem advogado constituído nos autos e de advogado particular que acompanha o preso.
Também se analisa nesta audiência situações como maus-tratos e tortura na abordagem policial situações que nos remetem a aplicação dos Direitos Humanos que são garantias internacionais a todos a pessoa presa ou livre. Essa maior efetivação dos Direitos Humanos no Direito Penal e Processual Penal se desenvolveu a partir do entendimento das Cortes Superiores que permitiram uma maior aplicação garantida nas situações criminais que chegam ao Poder Judiciário todos os dias. Passemos a análise do julgado que deu origem a audiência de custódia, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux:
“I. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem, que dispõe, em seu artigo 7º, item 5, que ‘toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora,à presença de um juiz’, posto ostentar o status jurídico supralegal que os tratados internacionais sobre direitos humanos tem no ordenamento jurídico brasileiro, legitima a denominada ‘audiência de custodia’, cuja denominação sugere-se ‘audiência de apresentação’. 2. O direito convencional de apresentação do preso ao Juiz, consectariamente, deflagra o procedimento legal de habeas corpus, no qual o Juiz apreciará a legalidade da prisão, à vista do preso que lhe é apresentado, procedimento esse instituído pelo Código de Processo Penal, nos seus artigos 647 e seguintes. 3. O habeas corpus ad subjiciendum, em sua origem remota, consistia na determinação do juiz de apresentação do preso para a aferição da legalidade da sua prisão, o que ainda se faz presente na legislação processual penal (artigo 656 do CPP). 4. O ato normativo sob o crivo da fiscalização abstrata de constitucionalidade contempla, em seus artigos 1º,3º,5º,6º e 7º normas estritamente regulamentadoras do procedimento legal de habeas corpus instaurado perante o juiz de primeira instancia, em nada exorbitando ou contrariando a lei processual vigente, restando, assim, inexistência de conflito com a lei, o que torna inadmissível o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade para a sua impugnação, porquanto o status do CPP não gera violação constitucional, posto legislação infraconstitucional (…)” (STF, ADI 5.240/SP, Tribunal Pleno, rel. Min. Luiz Fux, j. 20-8-2015, Dje 018, de 1º-2-2016).
A audiência de custódia se transformou em uma grande folga de desafogar o sistema prisional e, consequentemente, o fluxo de processos parados nas filas de trabalho das Varas Criminais do Poder Judiciário. Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entre fevereiro de 2015 até dezembro de 2019, foi-se realizado um total de 652 mil audiência de custodia no Brasil sob a presidência de 3 mil magistrados nos tribunais estaduais . Dados estatísticos que demonstram que estamos progredindo, corrigindo alguns erros.
Não é de hoje que os casos de desrespeito aos Direitos Humanos garantidos ao preso, a título de conhecimento são garantidos à todos os presos pela Lei de Execução Penal: 1. Direito à alimentação e vestimenta fornecidos pelo Estado. 2. Direito a uma ala arejada e higiênica. 3. Direito à visita da família e amigos. 4. Direito ao trabalho remunerado em, no mínimo, 3/4 do salário mínimo. 5. Direito à assistência médica. 6. Direito à assistência educacional: estudos de 1º grau e cursos técnicos. 7. Direito à assistência religiosa: todo preso, se quiser, pode seguir a religião que preferir, e o presídio tem que ter local para cultos. 8. Direito à assistência judiciária e contato com advogado: todo preso pode conversar em particular com seu advogado e se não puder contratar um o Estado tem o dever de lhe fornecer gratuitamente.
É necessário lembramos que esses direitos são garantias individuais e que os presos apenas perdem a liberdade, mas que até esse direito deve ser resguardada para que não haja um descumprimento nas garantias dos Direitos Humanos, mas sim uma efetiva conservação de direitos. Por esse motivo que a audiência de custódia se concretiza como um instrumento de efetivação dos direitos humanos.
Mas quando nos deparando com o uso da tecnologia e a audiência de custódia somos apresentados a um grande retrocesso. Como se é sabido e veremos no item a seguir, há possibilidades do uso de videoconferências no processo penal para realização de audiências criminais, porém não se foi permitido o uso dessa ferramenta tecnológica mesmo em tempo de pandemia do coronavírus. A justificativa para essa ariscada decisão sobre essa questão delicada foi dada pelo Conselho Nacional de Justiça através do Ministro Dias Toffili:
“Em seu voto, o presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, ressaltou que a videoconferência é inadequada aos objetivos das audiências de custódia, apontando a necessidade de atenção redobrada quando o ato envolver depoimento especial de criança e de adolescente. “Audiência de custódia por videoconferência não é audiência de custódia e não se equiparará ao padrão de apresentação imediata de um preso a um juiz, em momento consecutivo a sua prisão, estandarte, por sinal, bem definido por esse próprio Conselho Nacional de Justiça quando fez aplicar em todo o país as disposições do Pacto de São José da Costa Rica” destacou. A vedação de audiências de custódia por videoconferência está em sintonia com os artigos 287 e 310 do Código de Processo Penal e diretrizes já estabelecidas pelo CNJ – incluindo a Recomendação CNJ n. 62, que já previa a suspensão das audiências de custódia durante a pandemia da Covid-19, conforme destacou o presidente do CNJ em seu voto.” (CNJ, 2020)
O risco que se corre com a decisão tomada no dia 10 de julho de 2020 é de uma maior taxa de ineficiência pelo atraso na apresentação dos presos, fora o risco de contaminação ao colocar serventuários da justiça e presos em lugares fechados como são as salas de audiência de custódia dos tribunais estaduais. Pequenos detalhes, mas de graves consequencias já que não temos até o presente momento uma vacina capaz de manter todos os envolvidos nessa reunião a segurança necessária à saúde.
O ministro Marco Aurélio, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347 nos fala sobre o quadro de desrespeito aos direitos garantidos a pessoa sobre a custódia do Estado de modo que audiência de custódia tem servido como um instrumento para se combater essa situação no Poder Judiciário:
“Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas publicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como ‘estado de coisas inconstitucionais’ (…) Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias , audiências de custodias, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo Maximo de 24 horas, contando do momento da prisão.” (STF, ADPF 347 MC/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 9-9-2015, DJE 031, de 19-2-2016).
Desta forma, embora não seja permitido o uso da videoconferência nas audiências de custódia, podemos compreender que essa audiência é um instrumento de consolidação e aplicação das regras de direitos humanos ratificadas pelo Brasil em seu ordenamento jurídico, de modo que há um viés mais garantista no direito penal e processual penal com uma maior expansão dos direitos aos presos e custodiados pelo Estado. Assim, o Direito consegue acompanhar as mudanças no mundo e na sociedade.
3. POSSIBILIDADES DO USO DA VIDEOCONFERÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL
O sistema jurídico de processo penal brasileiro é de 1941, em uma sociedade que evolui constantemente é uma necessidade a modernização dos preceitos que constam nesse código. Por esta razão, para complementar a eficácia do Processo Penal, leis infraconstitucionais foram criadas e são aplicadas aos casos concretos com a alteração de artigos ou parte deles no Código Processual Penal brasileiro.
A primeira aparição do uso dessa ferramenta tecnológica no Código de Processo Penal está no artigo 185, §2° nos casos de interrogatório do acusado. Inicialmente a proposta do referido dispositivo legal é que o acusado seja conduzido a um estabelecimento a onde lhe seja permitido uma boa condução do interrogatório pela pessoa competente. Mas, excepcionalmente há a possibilidade de que não somente esse ato mas o acompanhamento de outros seja realizado por videoconferência, vejamos:
Art. 185. Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:
I – prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão possa fugir durante o deslocamento;
II – viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal;
III – impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código e
IV – responder à gravíssima questão de ordem pública. (redação dada pela Lei 11.900/2009)
A referida Lei n. 11.900 de 2009, alterou dispositivos do Código de Processo Penal, sendo responsável pela inclusão ao sistema processual penal o uso da ferramenta tecnológica da videoconferência para a realização do interrogatório, alterando assim o artigo supracitado e criando o artigo 222, §3° em que se permite o uso da videoconferência também em casos de oitivas de testemunhas. Desta forma, a videoconferência se torna um meio de proteção ao devido cumprimento dos objetivos aos quais foi criado o Direito Penal e sua atuação na sanção de condutas ilícitas, resguardando o preso e os demais serventuários do Poder Judiciário e as vitimas de qualquer novo trauma ou constrangimento.
Como citado, a inovação da videoconferência no Processo Penal foi estendida às testemunhas no artigo 222, §3° do Código de Processo Penal para os casos em que as testemunhas residirem em outra jurisdição da que o processo tramita, bem como seu depoimento seja realizado por videoconferência ou outro recurso tecnológico similar de transmissão de imagem e som em tempo real. Essa inovação trazida pela Lei supracitada tem como maior objetivo satisfazer a necessidade do processo, pois em determinados casos os depoimentos de testemunhas são arrolados como provas cabais que são o liame para determinar a inocência ou a condenação do indivíduo.
No que tange as vítimas, também são casos de uso da ferramenta tecnológica em estudo. Conforme o art. 217 do Código de Processo Penal é possível se verificado pelo Juiz que a presença do acusado causa humilhação e intimidação a vítima, seu depoimento pode ser realizado via videoconferência. Vejamos a letra da lei:
Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor ou serio constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. (Redação dada pela Lei 11.690/2008).
A Lei que dá essa redação ao dispositivo legal supracitado tem como maior objetivo que a vitima possa está com seu depoimento livre, sem qualquer coação para a essa prova seja uma prova licita. Uma vez analisado que a parte está sobre pressão seja de olhar para o acusado ou através de gestos, compromete a verdade e pode causar em injustiças que após o transito em julgado pode acarretar em problemas para o Estado. A satisfação da pretensão do ofendido e da testemunha deve ser avaliada juntamente com os princípios norteadores do Direito Penal e Processual Penal no que tange os depoimentos, a fim de se evitar transtornos a mais com uma sentença baseada em fato irreal ou prova ilícita.
No que tange o Tribunal do Júri, há também a possibilidade de realização de audiência por videoconferência do réu preso, resguardado todos os seus direitos e a entrevista prévia com seu defensor. A fundamentação para essa possibilidade se encontra no artigo 185 do Código de Processo Penal que usa a interpretação de depoimento de testemunhas e vítimas. Cabe ressaltar que esse uso é para atender algumas finalidades, entre elas a questão da ordem pública, pois diante de uma situação gravíssima como a pandemia da COVID-19, mais do que nunca se faz necessário a utilização dessa ferramenta tecnológica para o devido andamento dos trabalhos no Poder Judiciário.
Podemos concluir também que o uso da videoconferência e até mesmo gravações da audiência são provas de resguardo. Muitas vezes, há uma certa maldade em alguns depoimentos cujo objetivo é destruir a imagem de alguma das partes do processo, seja envolvendo os serventuários em situações acusadoras, policiais, réu, vitima ou até testemunhas. Com a inclusão dessa ferramenta nas audiências todos que fazem parte daquele processo podem verificar o conteúdo da gravação para esclarecimento de várias situações, ou seja, todos ganham, pois a pretensão de esclarecer os fatos e permitir ao magistrado um melhor arcabouço de provas para que seja a sentença justa em compatibilidade entre a conduta e a norma penal.
4. AS CONTRIBUIÇÕES DO USO DA VIDEOCONFERÊNCIA EM AUDIÊNCIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA
No mês de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou uma pandemia mundial da doença SARS-COV-2, ou também conhecida como COVID-19, causada pelo novo Coronavírus. Desde então, a população mundial tem enfrentado um dilema tendo em vista que esta doença causada por vírus é de alto contagio e não vacinas ou remédios 100% eficazes contra os sintomas. No mundo já são milhões de infectados e milhares de vidas perdidas para essa doença de caráter respiratório.
Diante desse cenário, os cuidados para se evitar o contágio do vírus tem se resumido a evitar aglomerações e cuidados de higiene além do uso obrigatório de máscaras. Por esta razão milhões de trabalhadores e empregadores no mundo adotaram um novo sistema de trabalho, o chamado Home Office . Esse novo formato de trabalho é realizado de casa para se evitar um maior transito de pessoas nas ruas, no transporte publico e em escritório ou prédios fechados, tudo para se evitar que haja mais vítimas dessa doença mortal.
O Poder Judiciário não ficou de fora do trabalho em casa, através da Recomendação n. 62 de 17 de março de 2020, alterada pela Recomendação n. 68/2020, os Tribunais e magistrado são os agentes responsáveis pelo que se chama de teletrabalho dos serventuários da justiça. A principal ideia dessa recomendação é evitar a propagação da infecção pelo novo coronavírus haja vista a quantidade de pessoas que todos os dias transitam nos fórum, sejam elas partes, policiais, serventuários, advogados, magistrados, membros da Defensoria Pública e Ministério Público.
Embora o uso efetivo da videoconferência não tenha sido aceito para as audiências de custódia propriamente dita, foi possível uma abertura para o uso dessa ferramenta tecnológica através da Recomendação n. 68/2020 do próprio Conselho Nacional de Justiça. Precisamente em seu artigo 8° da Recomendação n. 62/2020, que foi alterada pela resolução 68, no inciso I é possível a utilização em entrevistas prévias entre o acusado e seu defensor de forma reservada por videoconferência. Essa medida leva em consideração todas as orientações sanitárias para preservar a integridade da saúde do acusado e do seu defensor.
Não somente neste quesito é permitido o uso da videoconferência, nos Juizados Especiais Criminais as audiências, sejam elas de conciliação ou de instrução e julgamento, estão sendo realizadas de modo virtual e remoto. As partes geralmente são adicionadas em um grupo em uma plataforma de trocas instantâneas de mensagem para que se forneçam as suas alegações sejam por escrito ou através da videochamada. De semelhante modo trabalha as varas criminais da justiça ordinária e os serventuários de suas casas produzem as certidões, intimações e outros atos permitindo que os processos em tramitação não percam sua celeridade.
O mundo não parou, mas teve que se readaptar e utilizar das ferramentas possíveis para que se haja um devido cumprimento dos deveres do Poder Judiciário. Todos estão empenhados em resolver e garantir a devida prestação jurisdicional para todos os conflitos que chegam ao Poder Judiciário, mas sempre observando a devida orientação sobre a questão complicada que se instalou no mundo.
Essas novas formas de comportamentos e instrução de trabalho deverá se expandir para depois da pandemia, pois se formos analisar os números de produtividade, muitos tribunais estaduais tem batido com mais facilidade suas metas em tramitação de processos e o tempo de prolatação de uma sentença tem consideravelmente reduzido, seja na área penal ou em qualquer outra área se for comparado com os dados antes da pandemia.
Desta forma, podemos perceber e compreender de uma melhor visão que as novas tecnologias nos permitem evoluir e principalmente ter uma resposta eficaz e rápida para situações como as que vivemos nos dias atuais de pandemia. Embora não seja possível ainda enxergar o fim dessa situação, pode-se visualizar uma rápida adequação e o constante processo de evolução do Direito que conseguiu, mais uma vez, acompanhar a sociedade e seus novos anseios. Assim, a evolução da sociedade permite uma transformação de conceitos e visão em diversas esferas, pois com a sua explicita atuação no direito, advogados, juízes, promotores, defensores, serventuários e partes litigantes são obrigadas a estarem constantemente se atualizando para que possam juntos atuar de forma proveitosa diante dos novos desafios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, podemos concluir que o uso da videoconferência, inovação tecnológica interessante e inteligente, é capaz de suprir alguns déficits deixados pela lei. Os maiores beneficiados com o seu uso são as partes envolvidas em um processo, pois esses não são prejudicados, pois lhe é conferido e garantido os direitos da ampla defesa e do contraditório estariam, inclusive, tendo como resultado a redução dos custos do assim como de todos aqueles envolvidos.
Embora haja uma grande parcela de benefícios, existem pessoas que não concordam em englobar essa tecnologia ao Direito, resistindo aos avanços da era moderna por estarem acostumados a modo de proceder do século passado. Em todos os processos de modernização, sejam no próprio Poder Judiciário ou em outra esfera nos deparamos com a resistência de pessoas acomodadas ao seu estilo de vida, que pensam individualmente em si mesmas ao invés de se analisar os resultados trazidos a coletividade.
Mas, se assim não se fizer jamais conseguiremos acompanhar a evolução da sociedade, com o surgimento de diversas novas formas e consequencias no mundo jurídico. Se não nos readaptarmos e incluirmos as novas tecnologias em nosso cotidiano, corremos um grande risco de ficarmos antiquados e ultrapassados, isso serve de alerta para o Poder Judiciário brasileiro haja vista o alto nível de desenvolvimento jurídico que outras nações possuem.
A globalização veio para quebrar todas às barreiras necessárias, nos permitiu uma comunicação instantânea com várias pessoas ao mesmo tempo e em diversos lugares do mundo. Abriu-se para todos a possibilidade de interação rápida e eficiente, não somente com o uso de videoconferências mas também com a modernização dos processos, que de físicos passaram a se tornar eletrônicos cooperando para um meio ambiente mais sustentável, com impactos em todos os aspectos da sociedade.
As informações dos processos são mais seguras, na mesma proporção que os crimes se tornaram mais sofisticados. Tudo isso o Direito, enquanto ciência precisa estudar para uma melhor dinâmica perante os casos que lhe é submetido. São pequenos detalhes que se devem pensar e repensar sobre as consequencias das plataformas que o sistema brasileiro jurídico faz uso, pois uma vez não adaptados não será possível obter celeridade e desenvolvimento correto de evolução e satisfação das pretensões dos usuários da Justiça, pelo contrario apenas se conseguirá ao final a insatisfação gerando abertura para novas formas de resolução de conflitos, retirando da mão do Estado o controle absoluto dos problemas da sociedade. Portanto, cada vez mais é necessária a interação entre o Direito e a Tecnologia para que se possa cada vez mais o crescimento e a criação de leis que condizem a realidade da sociedade.
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Artigo escrito por:
Fernanda da Silva Monteiro: Acadêmica de Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA, email: Nandas-monteiro@rede.ulbra.br
Rubens Alves da Silva: Professor orientador da disciplina de Trabalho de Curso em Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA. Bacharel em direito, Advogado, especialista em processo civil judiciário, especialista em docência e gestão do ensino superior, mestre em direito pela FDSM, autor de livros. Email: Rubens.silva@ulbra.br