STJ – Selic ou não Selic, eis a questão
20 de agosto de 2013Responsável pela estabilização da jurisprudência infraconstitucional, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) retomou a discussão de uma questão controversa que já foi debatida diversas vezes em seus órgãos fracionários: a aplicação da taxa Selic nas indenizações civis estabelecidas judicialmente.
Na prática, a controvérsia afetada à Corte Especial pela Quarta Turma diz respeito ao artigo 406 do Código Civil (CC) de 2002, que dispõe que, quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
O problema é que existem duas correntes opostas sobre qual taxa seria essa, o que vem impedindo um entendimento uniforme sobre a questão.
Em precedentes relatados pela ministra Denise Arruda (REsp 830.189) e pelo ministro Francisco Falcão (REsp 814.157), a Primeira Turma do STJ entendeu que a taxa em vigor para o cálculo dos juros moratórios previstos no artigo 406 do CC é de 1% ao mês, nos termos do que dispõe o artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional (CTN), sem prejuízo da incidência da correção monetária.
Em precedentes relatados pelos ministros Teori Zavascki (REsp 710.385) e Luiz Fux (REsp 883.114), a mesma Primeira Turma decidiu que a taxa em vigor para o cálculo dos juros moratórios previstos no artigo 406 do CC é a Selic.
A opção pela taxa Selic tem prevalecido nas decisões proferidas pelo STJ, como no julgamento do REsp 865.363, quando a Quarta Turma reformou o índice de atualização de indenização por danos morais devida à sogra e aos filhos de homem morto em atropelamento, que inicialmente seria de 1% ao mês, para adotar a correção pela Selic.
Também no REsp 938.564, a Turma aplicou a Selic à indenização por danos materiais e morais devida a um homem que perdeu a esposa em acidente fatal ocorrido em hotel onde passavam lua de mel.
Caso afetado
No caso específico (REsp 1.081.149) afetado à Corte Especial e relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, uma mulher ajuizou ação declaratória de inexistência de dívida com pedido de indenização por dano moral, contra a Companhia Securitizadora de Créditos Financeiros Gomes Freitas.
Segundo os autos, a autora teve seus documentos pessoais falsificados, registrou boletim de ocorrência policial e cautelarmente incluiu nos cadastros da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) a informação “documento clonado”, ao lado de seu nome. Mesmo assim, a empresa determinou a inscrição de seu nome em cadastros de inadimplentes, em razão de dívida contraída por terceiros valendo-se da documentação falsificada.
O juízo de direito da 14ª Vara Cível da Comarca de Porto Alegre julgou os pedidos procedentes. Reconheceu a inexistência da dívida, determinou o cancelamento da inscrição indevida e condenou a companhia ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 3.800, atualizada pelo IGP-M e juros de 12% ao ano.
Em grau de apelação, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu parcial provimento ao recurso da autora para elevar a indenização a R$ 7 mil, fazendo incidir correção monetária e juros moratórios somente a partir da data daquele arbitramento.
A autora recorreu ao STJ, sustentando que os juros moratórios e a correção monetária advindos de relação extracontratual devem incidir a partir do evento danoso (Súmulas 43 e 54 do STJ) e não do arbitramento da indenização.
O julgamento do recurso foi interrompido por pedido de vista antecipada formulado pelo ministro João Otávio de Noronha. Ele entende que a questão deve ser previamente analisada pela Segunda Seção – especializada em direito privado – e não diretamente pela Corte Especial.
Oportunidade
Para o ministro Luis Felipe Salomão, o julgamento desse caso é a oportunidade para o STJ consolidar entendimentos sobre a incidência da taxa de juros moratórios em dívidas civis (artigo 406 do CC), o momento inicial para sua fluência e a exata delimitação do que seja responsabilidade contratual e extracontratual para efeitos de incidência de juros e correção monetária. Para ele, é importante adequar os verbetes sumulares e os precedentes da Corte.
A jurisprudência do marco inicial de incidência dos juros moratórios em responsabilidade extracontratual já está pacificada pela Súmula 54, que determina: “Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual.”
A incidência de correção monetária na indenização por danos morais está pacificada pela Súmula 362: “A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento.”
Isso significa que os juros moratórios e a correção monetária decorrentes de responsabilidade extracontratual fluem a partir de momentos diversos – os juros moratórios a partir do evento danoso, e a correção monetária, em caso de dano moral, a partir do arbitramento do valor da indenização.
No caso de responsabilidade civil contratual, a jurisprudência determina a incidência de juros a partir da citação ou do vencimento da dívida, conforme inúmeros precedentes julgados pela Corte Superior, entre eles o REsp 1.257.846, relatado pelo ministro Sidnei Beneti, e o REsp 1.078.753, relatado pelo ministro João Otávio de Noronha.
Controvérsia
A controvérsia que ainda não foi harmonizada pelo STJ não envolve o momento, mas o percentual que deve ser aplicado para efeito de correção da dívida. Em embargos relatados pelo ministro Teori Zavascki (EREsp 727.842), a Corte Especial firmou orientação no sentido de que “atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere artigo 406 do CC é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais”.
Posteriormente, também ficou consignado que “apesar de a Selic englobar juros moratórios e correção monetária, não se verifica bis in idem, pois sua aplicação é condicionada à não-incidência de quaisquer outros índices de correção monetária”.
E é justamente nesse contexto que gira a controvérsia. Para o ministro Luis Felipe Salomão, já que a taxa Selic engloba juros moratórios e correção monetária em sua formação, sua incidência em dívidas civis pressupõe a fluência simultânea de juros e correção, fato que não ocorre em indenizações civis (Súmulas 54 e 362).
Assim, defende o ministro, é necessário harmonizar a aplicação da Selic com as Súmulas 54 e 362 do STJ, que estabelecem a contagem de juros e de correção monetária em períodos distintos.
Tese
Luis Felipe Salomão reconhece que a taxa em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional é a Selic, mas entende que sua aplicação em dívidas civis não constitui “diretriz peremptória incontornável prevista no Código Civil”, sendo apenas um parâmetro a ser adotado na falta de outro específico previsto para determinada relação jurídica, como, por exemplo, o que há para dívidas condominiais (artigo 1.335, parágrafo 1º, do CC).
“Não obstante, parece claro que o artigo 406 do CC não encerra preceito de caráter cogente, tanto é assim que confere prevalência às estipulações contratuais acerca dos juros moratórios (‘quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada’) e a estipulações legais específicas, deixando expressa a subsidiariedade da incidência dessa taxa”, ressalta o ministro.
Mesmo discordando da aplicação da Selic em indenizações civis, ele consignou em seu voto ter aplicado tal entendimento em julgamento ocorrido na Segunda Seção para evitar o “pernicioso dissídio jurisprudencial interno”, mas ressalvou sua posição contrária à “aplicação indiscriminada da Selic”.
Proposta
Com base no Enunciado 20, aprovado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal em setembro de 2002, o ministro propõe que o STJ adote a utilização de índice oficial de correção monetária ou tabela do próprio tribunal local, somado à taxa de juros de 1% ao mês (ou 12% ao ano), nos termos do artigo 161 do Código Tributário Nacional (CTN).
O referido enunciado dispõe que “a taxa de juros moratórios a que se refere o artigo 406 é a do artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% ao mês”.
O mesmo enunciado, que possui caráter orientador da interpretação dos artigos, dispõe que a utilização da taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do artigo 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o artigo 192, parágrafo 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a 12% ao ano.
“Independentemente de questionamento acerca do acerto ou desacerto da adoção da Selic como taxa de juros a que se refere o artigo 406 do Código Civil, o fato é que sua incidência se torna impraticável em situação como a dos autos, em que os juros moratórios fluem a partir do evento danoso (Súmula 54) e a correção monetária em momento posterior (Súmula 362)”, destaca o ministro em seu voto.
Oscilação anárquica
Para o relator do recurso afetado à Corte Especial, é exatamente pelo fato de englobar em sua formação tanto remuneração quanto correção, que a Selic não reflete, com perfeição e justiça, o somatório de juros moratórios e a real depreciação da moeda – que a correção monetária visa recompor pelos índices de inflação medida em determinado período.
“A Selic não é um espelho do mercado; é taxa criada e reconhecida com forte componente político – e não exclusivamente técnico –, que interfere na inflação para o futuro, ao invés de refleti-la, com vistas na economia de um período anterior e na projeção para os próximos meses, em consonância também com as metas governamentais”, entende Salomão.
Para balizar sua proposta, o ministro incluiu em seu voto um minucioso estudo sobre a taxa de juros paga com a utilização da Selic desde 2003 e constatou que sua adoção na atualização de dívidas judiciais conduz a uma oscilação anárquica dos juros efetivamente pagos pela mora.
“Constata-se, por exemplo, o pagamento de juros a 12,31% ao ano em 2005, contra o irrisório 1,30% ao ano em 2012, períodos em que a inflação foi praticamente idêntica (5,69% e 5,84% a.a.), respectivamente”, analisou o relator.
Para ele, a adoção da Selic para efeitos de pagamento tanto de correção monetária quanto de juros moratórios pode conduzir a situações extremas: por um lado, de enriquecimento sem causa ou, por outro, de incentivo à litigância habitual, recalcitrância recursal e desmotivação para soluções alternativas de conflito, ciente o devedor de que sua mora não acarretará grandes consequências patrimoniais.
“Aliás, como as dívidas judiciais são atualizadas mensalmente, e não anualmente, há registros de meses em que a Selic ficou abaixo de índices oficiais que medem exclusivamente a inflação, o que significa juros negativos e que, em boa verdade, nesse período, foi o credor que pagou juros ao devedor, o que não se sustenta”, ressaltou o ministro em seu voto.
Para Luis Felipe Salomão, a adoção da Selic na relação de direito público alusiva a créditos tributários ou a dívidas fazendárias é inquestionável, mas não há motivos para transpor esse entendimento para relações puramente privadas, nas quais se faz necessário o cômputo justo e seguro de correção monetária e juros moratórios, “atribuição essa que, efetivamente, a Selic não desempenha bem”.
Voto
No caso afetado à Corte Especial, o ministro relator deu parcial provimento ao recurso especial para descartar a incidência da correção monetária a partir da inscrição indevida. Também consignou que a indenização por danos morais, para efeito de incidência de juros de mora, deve ser considerada sempre responsabilidade extracontratual – “até porque, no caso concreto, a ausência de contrato entre a autora e a instituição financeira foi exatamente o que justificou a propositura da ação”.
Assim, entendeu o ministro, deve ser aplicada a Súmula 54 do STJ, com os juros moratórios fluindo a partir do evento danoso.
Em relação à correção monetária, Salomão sustentou que a mesma deve incidir a partir do arbitramento da indenização em grau de apelação (Súmula 362), ao contrário do que propõe a recorrente, que busca a contagem também desde a inscrição indevida. O índice de correção será o da tabela adotada pelo tribunal de origem, desde que oficial.
O julgamento foi interrompido por pedido de vista logo após a apresentação do voto, de forma que nenhum ministro votou após o relator. Não há data para retomada da discussão.
Processos: REsp 830189; REsp 814157; REsp 710385; REsp 883114; REsp 865363; REsp 938564; REsp 1081149; REsp 1257846; REsp 1078753; EREsp 727842
FONTE: STJ